Por Núcleo de Advocacy, The Justice Movement.
No cenário efervescente da indústria da moda, uma realidade sombria permanece camuflada sob o brilho das vitrines: o trabalho escravo ou forçado, prática que está presente ainda nos dias de hoje, nos bastidores da criação de roupas e acessórios.
Essa forma contemporânea de exploração encontra terreno fértil na busca incessante por moda rápida e acessível. Migrantes e imigrantes vulneráveis, principalmente mulheres e crianças, muitas vezes compõem o perfil das vítimas, sujeitas às condições desumanas em prol da produção em massa. O avanço desse modelo de escravidão é um alerta, um eco de uma realidade passada que encontrou novas roupagens nos cantos menos visíveis da economia contemporânea.
Não por outro motivo que essa indústria já foi frequentemente associada à problemas de trabalho escravo e condições de trabalho desumanas em várias partes do mundo; está frequentemente vinculada à situações em que os trabalhadores são submetidos à condições de trabalho abusivas, com longas jornadas, salários inadequados ou inexistentes, falta de segurança no local de trabalho, restrições à liberdade de movimento e outras formas de exploração.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta que o trabalho forçado pode assumir diversas formas, e “está presente em todas as regiões do mundo e em todos os tipos de economia, até mesmo nas de países desenvolvidos e em cadeias produtivas de grandes e modernas empresas atuantes no mercado internacional.”[1]
Em síntese, o trabalho forçado é compreendido internacionalmente como “todo trabalho ou serviço que é exigido de qualquer pessoa sob a ameaça de qualquer penalidade e para o qual essa pessoa não se voluntaria" (Convenção sobre o Trabalho Forçado nº 29 da OIT).
Na legislação brasileira, contamos com um conceito de trabalho escravo contemporâneo que revela que, atualmente, muito além da privação de liberdade, ele está vinculado à variadas situações de ofensa à dignidade da pessoa, como hipóteses de submissão a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas ou forçadas por dívidas impostas aos trabalhadores[2].
No Brasil, a fiscalização desse tipo de crime é realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), que identifica empresas que utilizam trabalho análogo à escravidão. Anualmente é divulgada uma “lista suja” de empregadores que se utilizam do tipo de mão-de-obra escrava. Contudo, para que o MPT consiga ampliar a fiscalização, as denúncias são essenciais.
As principais áreas de atuação do Ministério Público do Trabalho, que podem ser objeto de denúncias são: (i) falta de igualdade de oportunidades e discriminação nas relações de trabalho; (ii) assédio moral nas relações de trabalho; (iii) trabalho escravo degradante; (iv) exploração do trabalho da criança e adolescente; (v) meio ambiente do trabalho inadequado; (vi) fraudes trabalhistas.
Só no primeiro semestre de 2023, no Brasil foi registrado o resgate de 1.443 trabalhadores em condições análogas à escravidão nas mais variadas modalidades e a indústria da moda é uma grande contribuinte para estes números, tão alarmantes.
Para compreender a extensão do problema no âmbito da moda, é fundamental explorar sua manifestação nesse segmento, analisando alguns dos fatores que contribuem para a sua existência ainda hoje em dia. Dentre eles, chamamos a atenção aos seguintes:
Globalização e cadeias de suprimentos complexas: a produção de roupas e acessórios muitas vezes envolve múltiplos estágios em diferentes países. Isso cria oportunidades para que as condições de trabalho sejam subcontratadas e escondidas em partes menos regulamentadas do mundo;
Pressão por preços baixos: a competição por preços mais baixos leva muitas empresas a buscar a redução de custos de produção, o que pode resultar em práticas exploratórias para reduzir os custos trabalhistas;
Falta de transparência: as cadeias de suprimentos da moda frequentemente carecem de transparência, tornando difícil para os consumidores e para a sociedade em geral identificar e abordar as más práticas;
Falta de regulamentação e fiscalização: em algumas partes do mundo, a regulamentação e a fiscalização das condições de trabalho são insuficientes, o que facilita a exploração dos trabalhadores.
A indústria da moda no Brasil, atualmente, é uma das maiores do mundo e utiliza principalmente a mão de obra de mulheres, que participam de todas as etapas do processo de produção, inclusive do cultivo e colheita de matéria-prima, da confecção e das atividades de varejo.
De acordo com a Associação Brasileira do Vestuário (Abravest), 87% dos 1,3 milhão de profissionais que atuam com costura no Brasil são do sexo feminino, sendo que a maioria destas mulheres são imigrantes e estão concentradas no estado de São Paulo, o principal centro econômico do país de empresas têxteis.
Apesar dos números, temos testemunhado nos últimos anos um aumento da conscientização sobre essas questões e uma pressão crescente sobre as empresas de moda para a melhora das condições de trabalho em suas cadeias de suprimentos. É justamente essa conscientização que costura a compreensão do problema à urgência de ação, de modo a resgatar dignidade e justiça no que deveria ser um mundo de beleza, fascínio e criatividade.
A cadeia produtiva da moda está amparada em uma lógica distópica. De um lado, o glamour de uma peça bem-acabada com conforto, identidade, seguindo as tendências e, principalmente, os preços baixos. Do outro lado, a costureira, que tem uma vida marcada por doenças provocadas pelo ambiente insalubre, privação de liberdade, violência e os mais variados assédios.
A pressão do mercado nos últimos anos, em especial após a pandemia, exige resultados cada vez mais rápidos, com a consequente produção acelerada, mão-de-obra barata e a precarização das condições de trabalho.
Com isto, ganhou notoriedade o Fast Fashion, um modelo de produção de vestuário descartável, caracterizado pelo curto período de consumo devido às constantes mudanças de tendências da moda, reproduzindo as grandes marcas renomadas com qualidade inferior, em grande volume e velocidade. Estes modelos não requerem muita qualificação, o que levam à crescente informalidade de trabalho, dificultando a fiscalização e o controle do processo produtivo.
O mais recente exemplo que tem levantado tons críticos é a Shein, popular nas redes sociais entre influencers, possui exatamente as características do fast fashion: peças inspiradas em tendências desde Maison Margiela, Yves Saint Laurent, Gucci por preços baixíssimos, uma alta demanda e acelerada produção.
Com a grande repercussão no caso desta atual potência do fast fashion, foi lançado o documentário Inside Shein Machine: UNTOLD, produzido pela emissora britânica Channel 4, que traz à luz as notícias absurdas de que empregados trabalham até 18 horas diárias, costurando, em média, 500 peças de roupa por dia, remunerados em cerca de R$ 0,20 por peça produzida.
A grande chinesa é apenas um retrato do grande problema que é o conceito de fast fashion, juntamente com Zara, H&M, Gap, Forever 21, Renner, Riachuelo, C&A, entre outras. A demanda global se apoia no consumismo exacerbado e leva estas empresas ao encontro de mãos de obra baratas e lucrativas.
Mas não precisamos ir até o outro lado do mundo para nos depararmos com essa realidade. A tendência observada no Brasil não é diferente. Por trás da popularidade dos bairros Bom Retiro e Brás, no centro de São Paulo, não somente encontramos lojas com milhares de opções rentáveis ao bolso do consumidor, mas também centenas de histórias de trabalhadores vivendo em pequenas oficinas de costuras com escassez de suprimentos, além de direitos e dignidade.
Jornada de trabalho exaustiva, falta de comida, alojamento sem água, falta de ventilação, ambiente insalubre; essas são algumas das caraterísticas em comum que trabalhadores viviam, quando resgatados pelo Ministério Público do Trabalho no primeiro semestre de 2023, na capital. Essas atribuições se repetem ao longo dos anos em cada resgate realizado pelo MPT.
A verdade é que, muitas vezes, o que vestimos tem um preço muito maior do que nos custa e é pago com vidas inocentes sendo escravizadas a partir do nosso consumo deliberado. Neste contexto, quando “costuramos os pontos”, entendemos que há uma correlação direta entre a moda e a escravidão. E isto não só pode, como deve mudar. Nós te convidamos a ser parte desta mudança conosco. Como consumidores, e como agentes de transformação, temos a responsabilidade de sabermos como as nossas roupas são produzidas. O que vestimos diz muito sobre quem somos, e isto não diz respeito apenas às combinações, cores e estilos, mas sim sobre quem o nosso consumo consciente pode proteger, ou escravizar.
Como um grande aliado nesta jornada contra o trabalho escravo, o aplicativo Moda Livre é gratuito, disponível na Apple Store e Google Play, e tem o objetivo de exibir informações sobre marcas do mundo todo. Para saber mais acesse: https://modalivre.org.br
Para fazer uma denúncia, caso suspeite da ocorrência de trabalho escravo, acesse https://mpt.mp.br/pgt/servicos/servico-denuncie ou Disque 100 para denúncias de qualquer violação aos direitos humanos.
Nos “vestirmos bem” pode ser um caminho para mudanças. Nos “vestirmos bem” pode significar cobrirmos outro alguém com dignidade.
E sabe qual é a melhor tendência, uma que nunca sai de moda, não importa a estação?
Tomarmos consciência destes fatos e escolhermos ser protagonistas da liberdade e da mudança que queremos ver no mundo. Hoje, aqui e agora!
Um enorme abraço, Núcleo de Advocacy do The Justice Movement
Referências:
[1] Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/lang--pt/index.htm
Acesso em 12/8/2023
[2] Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/conatetrap/trabalho-escravo
Acesso em 12/8/2023
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