Por Núcleo de Advocacy, The Justice Movement.

O tráfico de pessoas é uma chaga social, um crime que revela de forma esmagadora a desigualdade e as mais severas injustiças da história da humanidade.
Apesar de ser uma prática que desmonta o conceito de civilidade, ela ainda assola o mundo contemporâneo, desafiando fronteiras e violando os direitos, desde os mais fundamentais.
Por detrás deste termo, esconde-se uma realidade obscura e cruel, na qual milhares de pessoas são submetidas à exploração e ao sofrimento extremo. É um crime que transcende barreiras geográficas, afetando variados contextos, idades, gêneros e origens. Neste artigo, traremos à luz este tema tão relevante com objetivo de disseminar conhecimento, sensibilizar sobre a ocorrência dessa prática criminosa e apontar para o fato de que juntos, podemos prevenir de forma potencial que ela aconteça.
Na data de hoje, 30 de Julho, que marca o Dia Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, dedicamos esta produção às centenas de milhares de vítimas com lamento e pesar, mas também com compromisso e profunda esperança pelo fim deste crime.
O tráfico de pessoas, trata de um conceito amplo, que abarca a exploração e o lucro obtido por traficantes em detrimento de homens, mulheres e crianças para diversos fins, tais como o trabalho forçado, a venda de órgãos ou atividades sexuais com finalidades comerciais.
Compreender a essência dessas formas de exploração é crucial para combater efetivamente esse crime. Pesquisas sobre o tema indicam que as formas mais comuns de tráfico são para os fins de exploração sexual e de trabalho forçado. No Brasil, há a predominância do crime na modalidade de exploração sexual (tanto no tráfico interno como no internacional) e a maioria das vítimas são mulheres.
O trabalho forçado engloba uma gama de atividades nas quais as pessoas são exploradas através do uso de força, fraude ou coerção para realizarem trabalhos ou serviços contra sua vontade. Os elementos-chave desse tipo de exploração envolvem o recrutamento, o transporte e o fornecimento de pessoas para a realização de trabalho forçado. Traficantes utilizam diferentes meios de coação, como ameaças, manipulação de dívidas, confisco de documentos de identidade e coerção psicológica para subjugar suas vítimas. O objetivo final é a exploração do trabalho ou serviços da pessoa, independentemente do setor ou ambiente em que isso ocorra.
Dentre os subtipos de “trabalhos forçados”, merecem destaque a servidão doméstica e o trabalho infantil forçado. A primeira é uma forma de exploração na qual o traficante exige que a vítima realize trabalhos em uma residência privada. Essa prática cria vulnerabilidades únicas nas vítimas, uma vez que as trabalhadoras domésticas frequentemente se encontram isoladas e podem trabalhar sozinhas em uma casa. Seus empregadores controlam seu acesso a alimentos, transporte e moradia. O que ocorre dentro de uma residência privada fica oculto do mundo, incluindo autoridades policiais e inspetores de trabalho, dificultando a identificação das vítimas. Trabalhadoras domésticas estrangeiras são particularmente vulneráveis a abusos devido a barreiras linguísticas e culturais, além da falta de laços comunitários.
Já o "trabalho infantil forçado" descreve esquemas de trabalho forçado nos quais traficantes obrigam crianças a trabalharem. Indicadores de trabalho infantil forçado incluem situações em que a criança parece estar sob a custódia de alguém que não é membro da família e em que o trabalho da criança beneficia financeiramente alguém fora de sua família, além da privação de alimentação, descanso ou educação para crianças que estão trabalhando.
O tráfico sexual, por sua vez, abrange uma série de atividades em que um traficante usa força, fraude ou coerção para obrigar outra pessoa a se envolver em atividades sexuais com finalidades comerciais. Infelizmente, o tráfico sexual ainda é um crime altamente lucrativo e pode ocorrer em diversos locais, sejam eles estabelecimentos legais ou ilegais. As vítimas são exploradas para satisfazer a demanda do mercado do sexo, sujeitadas a uma vida de abusos e violência.
De acordo com o relatório “Relatório sobre o Tráfico de Pessoas 2022 – Brasil”, publicado pelo Departamento de Estado dos EUA:
“o Governo Brasileiro não cumpre os critérios mínimos para a erradicação do tráfico, mas está fazendo significativos esforços para fazê-lo. (...) Estes esforços incluíram a investigação e acusação de mais traficantes, a identificação de mais vítimas do tráfico e a continuidade de atualizações periódicas ao Cadastro de Empregadores que Tenham Submetido Trabalhadores a Condições Análogas à de Escravo (a Lista Suja). No entanto, o governo não atingiu os critérios mínimos em diversas áreas. O governo não relatou quaisquer condenações definitivas e as autoridades continuam a punir a maioria dos traficantes de pessoas para trabalho escravo com penas administrativas ao invés de encarceramento, o que nem exerceu uma função dissuasora eficaz e nem ofereceu justiça às vítimas. O governo relatou esforços limitados para combater o tráfico sexual ou para identificar as vítimas de tráfico sexual dentre populações extremamente vulneráveis, tais como crianças e pessoas LGBTQI+; algumas autoridades demonstraram ter conhecimento falho sobre o crime de tráfico de pessoas, deixando assim vítimas vulneráveis serem penalizadas por atos ilícitos que seus traficantes as obrigaram a cometer. Os mecanismos de proteção às vítimas, incluindo abrigos, permaneceram inadequados e variavam muito de estado para estado.”[1]
Por ser um fenômeno complexo e não facilmente identificado, o tráfico de pessoas ainda apresenta elevados índices de subnotificação. Segundo Boletim[2] preparado pelo Ministério da Saúde, com publicação em dezembro de 2022, as principais vítimas do tráfico são pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica.
Ainda de acordo com a mesma fonte, entre 2018 e 2020, foram realizadas operações pela Polícia Federal que resultaram no resgate de 203 vítimas de tráfico de pessoas internamente e internacionalmente no Brasil. Além disso, os Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS) detectaram 1.416 possíveis vítimas em atendimentos durante esse período, em sua maioria homens, vítimas de trabalho análogo ao de escravo.
No período de 2017 a 2019, os canais de denúncia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Disque 100 e Ligue 180, identificaram mais mulheres como possíveis vítimas de exploração sexual. Foram identificadas 255 possíveis vítimas pelo Disque 100 e 388 casos pelo Ligue 180. Além disso, o Ministério da Saúde identificou um total de 615 possíveis vítimas de tráfico de pessoas entre 2017 e 2020, sendo a maioria dos casos voltados ao sexo feminino.
Esses dados não representam o número total de vítimas de tráfico de pessoas no país, mas refletem uma parte dos casos, considerando que muitas vítimas não conseguem acessar serviços específicos de assistência e denúncia.
Todas essas formas de tráfico de pessoas acarretam violações inaceitáveis dos direitos humanos. Por esse motivo, a conscientização, a implementação de políticas efetivas e o fortalecimento das leis são essenciais para prevenir e enfrentar esses crimes, protegendo as vítimas e punindo os perpetradores.
Não por outro motivo é comum que, quando ouvimos sobre um crime tão absurdo, pensemos se algo tem sido feito para que isto acabe definitivamente.
O Brasil possui compromisso internacional sendo signatário do Protocolo de Palermo, considerado hoje o principal instrumento contra o tráfico de pessoas, que estabelece padrões básicos que devem ser respeitados pelos países participantes na luta contra este crime. A partir disto, o Brasil criou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e um pouco mais tarde promulgou a Lei de Combate ao Tráfico Humano, nº 13.344/16.
A legislação e a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas têm por finalidade estabelecer os princípios e objetivos do enfrentamento, da prevenção e da punição ao tráfico de pessoas, bem como a assistência à vítima.
Com a criação da Política, foram instituídos os Planos Nacionais em que requerem um comprometimento de órgãos e entidades governamentais e não governamentais para a construção de políticas Estaduais e Municipais para o enfrentamento do tráfico humano. Ou seja, enquanto a Política estabelece as medidas no campo abstrato, os Planos se voltam a implementarem estas medidas de forma concreta.
Como resultados desses Planos, foram criados os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, para serem atores da Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em parceria com governos estaduais com principal função de articular ações no enfrentamento ao tráfico, além de Comitês Estaduais e Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, cuja função é de articular atores públicos e privados e ajudar o Núcleo a planejar ações de enfrentamento e, também, os Postos Humanizados de Atendimento aos Migrantes, criados em âmbito municipal, com a finalidade de prestar o primeiro atendimento às vítimas de tráfico de pessoas.
Até o momento, o Brasil conta com três Planos Nacionais, os quais tem trabalhado para instituir políticas públicas, a fim de erradicar o tráfico humano.
Embora nosso país conte com legislação, políticas e órgãos trabalhando para combater o tráfico de pessoas, os avanços são lentos e deficitários, em razão da falta de recursos destinados às políticas públicas criadas e a falta de diálogo entre os órgãos governamentais envolvidos nesta luta, o que impede a efetividade de todas estas ações que lemos até aqui.
Junto a esta falta de articulação, temos a principal barreira para o combate deste crime: a falta de informação. O fato de não sabermos sobre determinado assunto, leva-nos a crer na inexistência de absurdos não superados. E a desinformação nos leva ao despreparo, à falta de capacitação e, principalmente, à inércia; e a inércia, neste caso, é a maior potência para o crescimento das organizações criminosas que vendem pessoas.
A prevenção e a visibilidade são as principais ferramentas que trabalham a favor da erradicação do tráfico de pessoas.
A boa notícia é que uma violação desta magnitude não possui os olhos só do governo e do legislativo, mas conta também com o engajamento de pessoas, como eu e você, que se unem para lutar pelos direitos daqueles que foram calados.
Nos últimos dez anos, o The Justice Movement tem sido um agente protagonista na prevenção do tráfico de pessoas, com ações e iniciativas que educam, sensibilizam e conscientizam a respeito desta temática para, não somente reprimir, mas, principalmente, prevenir uma violação de direito fundamental tão severa quanto o tráfico humano.
Hoje nós queremos te convidar a ser parte disso conosco.
É comum que diante de tamanho absurdo, fique o questionamento de todos nós, se essa situação tão horrível que rouba a vida, a dignidade e a liberdade de milhares um dia vai ter fim.
Para nós a resposta é óbvia: juntos nós podemos acabar com esse crime; com todas as políticas públicas criadas, com as ações de órgãos trabalhando para isto e inclusive com o nosso posicionamento a favor da vida – e da vida com dignidade.
O tráfico de pessoas ainda é uma realidade cruel que atravessa fronteiras e se encontra mais presente no nosso cotidiano do que imaginamos. É uma ofensa aos valores mais fundamentais da humanidade, violando a dignidade, a liberdade e os direitos básicos de indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade. Deixar em evidência alguns pontos do obscuro cenário do tráfico humano é aumentar a conscientização e sensibilizar a sociedade sobre a urgente necessidade de enfrentar esse crime.
A conscientização é uma grande ferramenta para que sejam tomadas ações efetivas nesse sentido. Ao difundir informações sobre esse problema global, podemos romper o silêncio que envolve suas vítimas, encorajando-as a denunciar seus agressores e a buscar ajuda.
Nosso desejo é que este informativo sirva como um chamado à ação. É responsabilidade de todos nós - em ação articulada - unir esforços para combater o tráfico de pessoas, um crime que não pode ser tolerado em nenhuma parte do mundo e precisa ser nomeado. Ao nos mobilizarmos para o fim do tráfico de pessoas, temos a oportunidade de construir um futuro mais justo para todos, em que a liberdade e a dignidade sejam valores inalienáveis, e a exploração e o sofrimento sejam relegados ao passado das nossas histórias.
Um enorme abraço, Núcleo de Advocacy do The Justice Movement
Em caso de suspeita da ocorrência de tráfico de pessoas, em qualquer modalidade, não se cale. Denuncie, através do disque 100. A denúncia é anônima, gratuita, e tem cobertura em todo território nacional.
Referências: [1] Disponível em: https://br.usembassy.gov/pt/relatorio-sobre-o-trafico-de-pessoas-2022-brasil/ Acesso em 16/7/2023. [2] Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/artigos/boletins/boletim_epidemiologico_svs_45.pdf Acesso em 20/7/2023.
Parabéns pelo artigo de assunto tão importante/preocupante nos dias atuais em que grande parte da população talvez sequer tenha conhecimento das informações disponibilizadas. Muito importante a divulgação das estatísticas atualizadas e os canais de denúncias como forma de mobilização das pessoas para o fim do tráfico de pessoas.